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<p>aí passamos miseravelmente, com poucos mantimentos e dormindo de baixo de umas lapas em cima da areia. E de noite tínhamos grande perseguição de uns caranguejos brancos, que têm seus buracos na terra, entram no mar, e pela tarde saem em bandos tão numerosos, que ficam cobertas todas as prayas. Quando dormiamos, pegavam nos pés, ou braços, e nos abrasavam coms suas mordiduras: finalmente aos dois de fevereiro dia de Nossa Senhora demos a vela com bom vento. Mas ao segundo dia acalmou o vento bom, e levantou-se um Nordeste ponteiro tão rijo, que desmanchou quatro velas e nos deu 4. ou 5. dias de tormenta nas bocas do Estreito. Daí sempre com vento contrário, e mil voltas fomos costeando toda a Arábia Feliz, e a Pérsia, e no cabo de cinquenta e sete dias, com morte de muita gente, e todos os mais doentes, consumidos à fome, aos 30 de Março pelas 2. da tarde avistamos as fortalezas desta barra de Goa, e demos fundos, com salva triplicada de toda a artilharia, recebendo-a também dos quatro fortes, e o mesmo se fez o dia seguinte pela manhã, com qual alegria, Vossa Reverência pode imaginá-lo. Torno um ponto atrás que me esqueceu, pertencente à Ilha de Socotorá. Está posta esta ilha em doze graus de altura pela banda do Norte 25. léguas longe de terra firme nas portas do mar Roxo<ref>Red Sea (Mar Vermelho). The use of 'roxo' ('purple', in Portuguese) as a phonetic transposition from the Italian 'rosso', meaning 'red',  is still found in some expressions in present-day Portuguese language.</ref>. É terra totalmente deserta, e toda de serras e mais serras escalvadas, que não tem inveja aos nossos Alpes. Não tem mais que uns arbustos, e muitos deles peçonhentos. Abunda de muito gado gostoso <gap/> maravilha, de tâmaras, leite etc. que é o mantimento ordinário deles. As águas são preciosas, os ares sadios, portos para as naus, bons, e de grande fundo, e o mar cheio, e qualhado de peixe. A gente da terra são Cristãos de São  Tomé, veneram as cruzes, imagens e todas as cousas sagradas dos Cristãos, tem Cruzes em cima das Mesquitas com flor de Liz, e aí rezam umas orações que passam de Pais em filhos ab immemorabili, nem sabem o sentido delas, sendo em língua Chaldea. Porém, como
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estejam sujeitos aos Arábios, que os tratam como escravos, beberam já muito dos seus costumes, e principalmente se <unclear>fanam</unclear> como eles. São grandemente afeiçoados aos mistérios da Nossa fé, e o mostravam, quando lhes falava eu, ficando pasmados, e venerando-os. E na verdade não sei, como já não se fundou aí alguma missão, que seria de grande proveito, posto que os Mouros não nos
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deixaram converter, e eles por este medo não no fazem. Era fim tudo quanto conta em uma sua carta São Francisco Xavier, que aí foi invernar, achei verdade, e vi com os próprios olhos. Vamos agora de onde saímos. Desembarcamos ao Domingo pela manhã com grande contentamento e regozijo de nossas almas depois de um ano de tçao trabalhoso cárcere e fomos a Goa; aonde todos os Padres nos receberam com festas, e alegrias no Colégio de São Paulo novo. Fui prosseguindo o estudo de Teologia com ótima saúde, e melhor do que estava em Europa. E os Superiores me fizeram depois esta honra, como também ao Padre Santucci de dar-nos o grau de mestres em artes, ou filosofia, com as devidas solenidades, e daqui a uns
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poucos de meses hei de ir para o Reino do Grão Mogol em missão, caminho de quatro meses.<lb/></p>
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<p>Já a Nau está a pique para fazer vela; onde direi em breve o que havia de dizer mais largamente. Vossa Reverência me pediu na sua carta várias cousas de Curiosidade; Respondo.<lb/> </p>
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<p>Quanto à língua desta terra, ela é dificultosíssima, e mais de quantas tenho visto até agora; contudo não me desanimo. E a Dezembro mandarei a Vossa Reverência livros impressos, que já tenho alguns, uma arte perfeita,Uma Prosódia, e todas as letras assim do Norte, como do Sul, que são diferentes, e muitas, em número quase de quatrocentas.<lb/></p>
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Revision as of 12:28, 4 April 2020

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ahi passamos miseravelmentẻ, com pooucos mantimentos e durmindo de bayxo d'hũas lapas em
cima da area. e de noyte tinhamos grande perseguiçaõ d'huns garanguẻjos brancos, qe tem seus bura
cos na tẻrra, entraõ no mar, e polla tarde sahem em bandos taõ numerosos, qe ficaõ cubertas tod
as prayas. quando durmiamos, pegavaõ nos pes, ou braços, e nos abrasavaõ coms suas mordiduras:
finalmẻnte aos dous de fevreyro dia de Nossa Senhora demos a vela com bom vento. mas ao segundo dia
accalmou o vento bom, e levantouse hũ Nordest ponteyro taõ rijo, qe dẻsmanchou quatro velas e
nos dẻu 4. ou 5. dias de tormenta nas boccas do Estreyto. d' ahi sempre com vento contrario, e mil voltas
fomos costeando toda a Arabia felix, e a Persia, e no cabo de cincoenta e sete dias, com morte de muy=
ta gente, e todos os mays doente, consumidos a fome, aos 30 de Março pollas 2. da tardẻ avistamos
as fortalezas d'esta barra de Goa, e demos fundos, com salva triplicada de toda a artelheria, recebendoa
tambẻm dos quatro fortes, e o mesmo se fez o dia siguinte polla manhãa, com qual alegria, VR. pode
imaginalo. Torno hũ ponto atràs qe me esquẻcẻo, ptencẻnte a Ilha de Sacatorà. Esta posta esta ilha
em doze graos d'altura pella banda do Nort 25. legoas longe de terra firme nas portas do mar Roxo.
he terra totalmente deserta, e todo de serras e mays sẻrras escalvadas, qe naõ tem envẻja aos nossos
alpẻs. naõ tem mays qe huns arbustos, e muytos d'elles pẻçonhentos. abunda de muyto gado gostoso
maraviglia, de tamaras, lẻyte & qe hẻ o mantimẻnto ordinario d'elles. as agoas saõ preciosas, os
ares sadios, portos pera as naos, bons, e de grandẻ fundo, e o mar chẻyo, e qualhado de peyxe. a gente
da terra saõ Christaõs de S. Tomè, veneraõ as cruzes, imagẻns e todas as cousas sagradas dos Christaõs
tem Cruzes em cima das Mẻsquitas com flor de Liz, e ahi rezaõ hũas oraçoẽns qe passaõ de Pays
ẻm filhos ab immemorabili, nem sabẻm o sentido d'ellas, sendo em lingoa Chaldea. porem, como
stejaõ sogeytos aos Arabios, qe os trataõ como escravos, bẻberaõ jà muyto dos seus costumes, e princi=
palmente se fanaõ como elles. sam grandem.te affeyçoados aos mysterios da Nossa fèe, e o mostra=
vaõ, quando lhes fallava ev, ficando pasmados, e venerandoos. e na verdade naõ sey, como jà
naõ se fundou ahi algũa missaõ, qe seria de grandẻ provẻyto, posto qe os Mouros naõ nos
dẻyxariaõ converter, e ẻlles por este medo naõ no fazem. Era fim tudo quanto conta em hũa
sua carta S. francisco Xavier, qe ahì foy envernar, achey verdade, e vỳ com os proprios olhos.
Vamos agora d'ondẻ salimos. dẻsẻmbarcamos ao Domingo polla manhãa com grande conten=
tamento e regocẻjo de nossas almas dẻpoys d'hũ anno de taõ trabalhoso carcere e fomos a
Goa; aonde todos os Padrẻs nos rẻceberaõ com fẻstas, e alẻgrias no Collẻgio de S. Paulo novo.
Fuy proseguindo o estudio de Theologia com optima saude, e melhor do qe estava Em Eu=
ropa. e os Superiores me fizeraõ depoys esta honra, como tambem ao P. Santucci de dar
nos o grao de mestres em artẻs, ou filosofia, com as devidas solenidadẻs, e d' aqui a huns
poucos de meses hey dẻ ir pera o Reyno do Gran Mogor Er em missaõ, caminho de qua=
tro meses.

Jà a Nao està a pique pera fazer vela; ondẻ dirẻy em breve o qe havia de dizer mays
largamentẻ. V. R. me pẻdio na sua carta varias cousas de Curiosidade; Respondo.

Quanto a lingoa d'ẻsta terra, ella he difficultosis.ma, e mays de quantas tenho visto atègora; com tudo
naõ me desanimo. e a Dẻzembro mandarẻy a V.R. libros emprẻsso, qe jà tenho algũs, hũa arte perfẻyta,
Hũa Prosodia, e todas as letras assim do Nort, como do Sul, qe sam diffẻrentes, e muytas, em numero
quasi de quatrocentas.


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aí passamos miseravelmente, com poucos mantimentos e dormindo de baixo de umas lapas em cima da areia. E de noite tínhamos grande perseguição de uns caranguejos brancos, que têm seus buracos na terra, entram no mar, e pela tarde saem em bandos tão numerosos, que ficam cobertas todas as prayas. Quando dormiamos, pegavam nos pés, ou braços, e nos abrasavam coms suas mordiduras: finalmente aos dois de fevereiro dia de Nossa Senhora demos a vela com bom vento. Mas ao segundo dia acalmou o vento bom, e levantou-se um Nordeste ponteiro tão rijo, que desmanchou quatro velas e nos deu 4. ou 5. dias de tormenta nas bocas do Estreito. Daí sempre com vento contrário, e mil voltas fomos costeando toda a Arábia Feliz, e a Pérsia, e no cabo de cinquenta e sete dias, com morte de muita gente, e todos os mais doentes, consumidos à fome, aos 30 de Março pelas 2. da tarde avistamos as fortalezas desta barra de Goa, e demos fundos, com salva triplicada de toda a artilharia, recebendo-a também dos quatro fortes, e o mesmo se fez o dia seguinte pela manhã, com qual alegria, Vossa Reverência pode imaginá-lo. Torno um ponto atrás que me esqueceu, pertencente à Ilha de Socotorá. Está posta esta ilha em doze graus de altura pela banda do Norte 25. léguas longe de terra firme nas portas do mar Roxo[1]. É terra totalmente deserta, e toda de serras e mais serras escalvadas, que não tem inveja aos nossos Alpes. Não tem mais que uns arbustos, e muitos deles peçonhentos. Abunda de muito gado gostoso maravilha, de tâmaras, leite etc. que é o mantimento ordinário deles. As águas são preciosas, os ares sadios, portos para as naus, bons, e de grande fundo, e o mar cheio, e qualhado de peixe. A gente da terra são Cristãos de São Tomé, veneram as cruzes, imagens e todas as cousas sagradas dos Cristãos, tem Cruzes em cima das Mesquitas com flor de Liz, e aí rezam umas orações que passam de Pais em filhos ab immemorabili, nem sabem o sentido delas, sendo em língua Chaldea. Porém, como estejam sujeitos aos Arábios, que os tratam como escravos, beberam já muito dos seus costumes, e principalmente se fanam como eles. São grandemente afeiçoados aos mistérios da Nossa fé, e o mostravam, quando lhes falava eu, ficando pasmados, e venerando-os. E na verdade não sei, como já não se fundou aí alguma missão, que seria de grande proveito, posto que os Mouros não nos deixaram converter, e eles por este medo não no fazem. Era fim tudo quanto conta em uma sua carta São Francisco Xavier, que aí foi invernar, achei verdade, e vi com os próprios olhos. Vamos agora de onde saímos. Desembarcamos ao Domingo pela manhã com grande contentamento e regozijo de nossas almas depois de um ano de tçao trabalhoso cárcere e fomos a Goa; aonde todos os Padres nos receberam com festas, e alegrias no Colégio de São Paulo novo. Fui prosseguindo o estudo de Teologia com ótima saúde, e melhor do que estava em Europa. E os Superiores me fizeram depois esta honra, como também ao Padre Santucci de dar-nos o grau de mestres em artes, ou filosofia, com as devidas solenidades, e daqui a uns poucos de meses hei de ir para o Reino do Grão Mogol em missão, caminho de quatro meses.

Já a Nau está a pique para fazer vela; onde direi em breve o que havia de dizer mais largamente. Vossa Reverência me pediu na sua carta várias cousas de Curiosidade; Respondo.

Quanto à língua desta terra, ela é dificultosíssima, e mais de quantas tenho visto até agora; contudo não me desanimo. E a Dezembro mandarei a Vossa Reverência livros impressos, que já tenho alguns, uma arte perfeita,Uma Prosódia, e todas as letras assim do Norte, como do Sul, que são diferentes, e muitas, em número quase de quatrocentas.


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  1. Red Sea (Mar Vermelho). The use of 'roxo' ('purple', in Portuguese) as a phonetic transposition from the Italian 'rosso', meaning 'red', is still found in some expressions in present-day Portuguese language.