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bilissimas, qe nos botavaõ atràs, e tres graos, tornavamos a encher a altura, despoys dẻscahiamos, e
isso por quatro, ou 5. vezes, ainda com bom vento, o qual accalmou totalmente, e estivẻmos ahi encra=
vados, e immovẻys, sem nos podermos bolir por hũa parte, ou por outra por trinta e oyto dias, e dias ver=
dadeyramente lastimosos. O sol era tam quente, qe abrazava os bofes, naõ havia agoa, pera aleviar
a quentura, e tudo era hũa fornalha. jà faltavaõ os mantimentos, jà todos adoeciaõ de mal de
Loanda, de bicho, dẻ maletas, dẻ malinhas malignas &, e cada dia lançavaõse mortos ao mar. jà sobre
tudo isso dẻo como pestilencia na nao, poys o mal pegava logo, e em brevẻ morriasẻ de repentẻ. n’es=
te taõ miseravel estado todos os Padres acodiamos â nẻcessidade da gente, tirando o bocado da propria
bocca, ajudandoos a bẻm morrer, a fazer confissões particularẻs, e gerays, e assistindogl lhe atè o ulti=
mo da vida. e foy providencia de Deos, qe estandonos de dia, e de noyte bocca a bocca com aquelles
fedolentos, e semipodres naõ nos deu nenhum mal mays, qe algũa dor de estomago, poys na verdade
bastava pera nos matar. E cada hum hia dispondo as cousas da sua alma, aparelhandose a mor=
rẻr. naõ havia remedio a taõ grandẻs desastres, nem de tomar terra. fizeraõse procissões de
penitencia por vezes e muytos se rẻconciliaraõ com Deos, qe jà da muyto tempo andavaõ perdidos.
finalmento tomouse por melhor partido tornar a Moçambique por 600. Legoas, qe morrẻr d’aquelle
modo no mar desemparados. Mas oh desastres do mar, oh pouca fee d’este infido Clemente, poys logo
viraraõ as correntes contro nos taõ fortes, qe nos empurraraõ p.a o estreyto, e avistamos o Cabo de Fuy.
aqui naõ hey de dẻyxar hũa cousa digna de admiraçaõ. Estavamos duas legoas perto dẻ terra en calmaria
quando pola tarde da banda de Poente vimos andar pello ar hũa cousa como sombra bem grande, e
dandose sempre mays a ver, repartiose em duas, e eraõ duas avẻs portentosas, qe voavaõ pello ar
junto de terra, e vimolas claramente. ao qe mostravaõ, tinhaõ azas do tamanho cadaqual da
vela grande da Nao, e mays, e o corpo naõ duvido qe correspondẻria na mole. observamos tudo por
espaço de meya hora; e concluyose qe havião de ser dous passeros espantosos, e homens qe foraõ outras
vezes a India disseraõ, qe n’ aquẻllas paragens de Africa hay machina d’ esses, e qe tẻm tanta força, qe
levão por esses ares hũ boy, ou quolquer outro animal. já tinhamos as correntes favoraveys, e mudado o
conselho primeyro dẻyxamos levar aondẻ Deos fossẻ servido. e at assim sem bafo de vento andamos
em dous dias, quanto nam andariamos em cinco com bom vento. avistamos o Cabo de Gar Guarda=
fúy, e d’ ali à hum nada os Ilhotes de Sacatorà, e em fim a mesma Ilha, estando com ella o dia
de todos os Santos. Quiz Nosso Senhor consolar a nossa fome, e pou poys por todo o dia da Vigilia appanhou=
se tanta cousa de Peyxe, qe chamão Cachorras, e he peyxe grandẻ, e muyto sadio, qe podia bastar por 20. dias;
ra cousa admiravel, qe lançando não sô enzoys, se naõ pregos com qualquer linha, e hũ pedaço de pan=
no branco, pegavaõ logo os peyxes, e cadahũ levou os seus doze, ou quinze, onde puderaõ aliviar a fome.
poys fiz menção d’ esse peyxe, direy o modo com qe se pesca. Costumaõ esses andar em bandos grandes
em tempo qe venta, e correm atrás de outros peyxinhos qe chamaõ voadores dẻ grandeza pouco may
d’hũa Sardinha, com duas azas, e voaõ fora da agoa por espaços de 40, ou 50 passos, e tornaõse a
mergulhar, e d’esses hay immensidade por todo o mar das Ihas Canarias pera cà. ẻsses peyxinhos
sam de bom gosto, porem muyto perseguidos das Cachorras, e quando naõ podem escaper d’outro
modo, poemse a voar; e acontece qe ellas daõ tays saltos sobrẻ a agoa, qe muytas vezes os al=
cançaõ. poys por isso mesmo poemse ao redor do enzol hũ panno branco, com duas pennas, qe lhe en=
cubrem a ponta, ou com doys pedaços do mesmo panno; e com as linhas vaõ bolindo sobre o mar, por
onde passão as Cachorras, e he ordinariam.te na proa, aonde quebraõ as ondas e ellas cuydando, qe aquẻlla
tal cousa he o peyxe voador, arremeçaõse com força, pegaõ no enzol e ficaõ presas com summa facili=
dadẻ. outras castas dẻ peyxẻs portentosos vimos ao redor d’ esta Ilha, qe na verdade parecẻ hũ coreto

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bilíssimas, que nos botavam atrás, e três graus, tornávamos a encher a altura, despois decaíamos, e isso por quatro, ou 5. vezes, ainda com bom vento, o qual acalmou totalmente, e estivemos aí encravados, e imóveis, sem nos podermos bolir por uma parte, ou por outra por trinta e oito dias, e dias verdadeiramente lastimosos. O sol era tão quente, que abrazava os bofes, não havia água, para aliviar a quentura, e tudo era uma fornalha. Já faltavam os mantimentos, já todos adoeciam de mal de Luanda, de bicho, de maletas, de malignas etc., e cada dia lançavam-se mortos ao mar. Já sobre tudo isso deu como pestilência na nau, pois o mal pegava logo, e em breve morria-se de repente. Neste tão miserável estado todos os Padres acodíamos à necessidade da gente, tirando o bocado da própria boca, ajudando-os a bem morrer, a fazer confissões particulares, e gerais, e assistindo-lhe até o último da vida. E foi providência de Deus, que estando-nos de dia, e de noite boca a boca com aqueles fedorentos, e semipodres não nos deu nenhum mal mais, que alguma dor de estômago, pois na verdade bastava para nos matar. E cada um ia dispondo as cousas da sua alma, aparelhando-se a morrer. Não havia remédio a tão grandes desastres, nem de tomar terra. Fizeram-se procissões de penitência por vezes e muitos se reconciliaram com Deus, que já de muito tempo andavam perdidos. Finalmento tomou-se por melhor partido tornar a Moçambique por 600. Léguas, que morrer daquele modo no mar desamparados. Mas oh desastres do mar, oh pouca fé deste ínfindo Clemente, pois logo viraram as correntes contra nós tão fortes, que nos empurraram para o estreito, e avistamos o Cabo de Fuy. Aqui não hei de deixar uma cousa digna de admiração. Estávamos duas léguas perto de terra em calmaria quando pela tarde da banda de Poente vimos andar pelo ar uma cousa como sombra bem grande, e dando-se sempre mais a ver, repartiu-se em duas, e eram duas aves portentosas, que voavam pelo ar junto de terra, e vimo-las claramente. Ao que mostravam, tinham asas do tamanho cada qual da vela grande da Nau, e mais, e o corpo não duvido que corresponderia na mole. Observamos tudo por espaço de meia hora; e concluiu-se que haviam de ser dois pássaros espantosos, e homens que foram outras vezes à Índia disseram, que naquelas paragens de África há machina desses, e que têm tanta força, que levam por esses ares um boi, ou qualquer outro animal. Já tínhamos as correntes favoráveis, e mudado o conselho primeiro deixamos levar aonde Deus fosse servido. E assim sem bafo de vento andamos em dois dias, quanto não andaríamos em cinco com bom vento. Avistamos o Cabo de Guardafui, e dalí a um nada os Ilhotes de Socotorá, e enfim a mesma Ilha, estando com ela o dia de todos os Santos. Quis Nosso Senhor consolar a nossa fome, pois por todo o dia da Vigília apanhou-se tanta cousa de Peixe, que chamam Cachorras, e é peixe grande, e muito sadio, que podia bastar por 20. dias; era cousa admirável, que lançando não só anzois, se não pregos com qualquer linha, e um pedaço de pano branco, pegavam logo os peixes, e cada um levou os seus doze, ou quinze, onde puderam aliviar a fome. pois fiz menção desse peixe, direi o modo com que se pesca. Costumam esses andar em bandos grandes em tempo que vento, e correm atrás de outros peixinhos que chamam voadores de grandeza pouco mais de uma Sardinha, com duas asas, e voam fora da água por espaços de 40, ou 50 passos, e tornam-se a mergulhar, e desses há imensidade por todo o mar das Ihas Canárias para cá. Esses peixinhos são de bom gosto, porém muito perseguidos das Cachorras, e quando não podem escaper de outro modo, põem-se a voar; e acontece que elas dão tais saltos sobre a água, que muitas vezes os alcançam. Pois por isso mesmo põem-se ao redor do anzol um pano branco, com duas penas, que lhe encobrem a ponta, ou com dois pedaços do mesmo pano; e com as linhas vão bolindo sobre o mar, por onde passam as Cachorras, e é ordinariamente na proa, aonde quebram as ondas e elas cuidando, que aquela tal cousa é o peixe voador, arremeçam-se com força, pegam no anzol e ficam presas com suma facilidade. Outras castas de peixes portentosos vimos ao redor desta Ilha, que na verdade parece um coreto


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